CHAMADA DE TRABALHOS v. 18, n. 1, 2025
AS NARRATIVAS DE FILIAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE
Celebramos em 2025 os 50 anos de publicação do importante livro de Philippe Lejeune: Le Pacte Autobiographique (Seuil, 1975), obra que marcou uma inflexão nas pesquisas sobre a autobiografia. O teórico que transformou os estudos sobre as escritas de si e direcionou os holofotes para um gênero, até então desprestigiado, nunca cessou de revisitar e modificar suas noções. Assim como as reflexões de Lejeune, o seu objeto de pesquisa também se constrói em permanente transformação. Meio século depois da publicação do texto seminal do teórico, vivemos uma era em que as escritas de si ocupam uma posição central dentro das produções literárias, sendo permanentemente reconfiguradas. No contexto francófono, a publicação e a boa recepção do Dictionnaire de l’autobiographie. Écritures de soi en langue française, em 2017, sob a organização de Françoise Simonet-Tenant, refletem o fôlego dessa modalidade literária.
No dossiê “Narrativas de filiação na contemporaneidade”, buscamos reunir artigos em torno de obras movidas pela indagação, ou mesmo investigação sobre a ascendência como estratégia de autocompreensão. Trata-se de narradores que investigam uma ancestralidade da qual se sentem herdeiros, em geral problemáticos; falam do outro para, na verdade, falar de si, operando um deslocamento. “O relato do outro – pai, mãe ou tal antepassado – é o desvio necessário para chegar a si, para se compreender nessa herança: a narrativa de filiação é um substituto da autobiografia” (Viart, 2009, p. 80).
Desde meados da década de 1990, Dominique Viart forjou o termo “narrativa de filiação” [récit de filiation] para destacar um número considerável de publicações que abarcam a temática da filiação, da herança e da transmissão, mobilizando estratégias recorrentes. De Annie Ernaux a Leila Sebbar, Maryse Condé e Annette Wieviorka, ou ainda Pierre Michon, Dany Laferrière, Émmanuel Carrère ou Édouard Louis, a narrativa de filiação tornou-se uma das manifestações autobiográficas mais recorrentes na atualidade. No contexto brasileiro, podemos pensar, por exemplo, nos nomes de Tatiana Salem Levy, Julián Fuks, Adriana Lisboa, José Henrique Bortoluci, Gabriel Abreu, Noemi Jaffe, Conceição Evaristo, Salim Miguel e muitos outros e outras.
As narrativas de filiação dizem respeito a uma tendência ampla que, apesar de contemplar variações narratológicas distintas, podem ser consideradas como um fenômeno de época, presente em diferentes regiões do mundo globalizado, reunindo tanto textos referenciais como ficcionais. Nesse vasto espectro, encontramos muitas obras inseridas em contextos históricos marcados pela violência extrema, como o da Shoah, os genocídios, as ditaduras hispano-americanas, a escravidão ou a despossessão advinda da colonização. As figuras parentais aparecem também no cerne de obras que problematizam a mobilidade social e os conflitos enfrentados por narradores trânsfugas de classe.
O dossiê busca contribuir para a reflexão sobre as narrativas de filiação como modalidade recorrente das escritas de si, a partir de década de 80 do século XX e, sobretudo, no primeiro quarto do novo século. Busca pensar, ainda, nas reverberações das narrativas de filiação na literatura como um todo, não apenas nas escritas de si, mas impactando inclusive as tendências da ficção contemporânea e ensejando os “romances de filiação”.
Referências
BAHIENSE, Andrea de C. Martins; CAMPOS, Laura Barbosa (Org). “Escrever a vida”:diálogos em torno de Annie Ernaux. Juiz de Fora: Editar, 2024.
BERND, Zilá. A persistência da memória: romances da anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional. São Paulo: Ed. Besouro, 2018.
DEMANZE, Laurent. Encres orphelines. Pierre Bergounioux, Gérard Macé, Pierre Mchon. Paris: José Corti, 2008, (« Les essais »).
DEMANZE, Laurent. Un nouvel âge de l’enquête: portraits de l’écrivain contemporain en enquêteur. Paris: Éditions Corti, 2019, (« Les essais »).
FIGUEIREDO, Eurídice. A nebulosa do (auto)biográfico. Vidas vividas, vidas escritas. Porto Alegre: Zouk, 2022.
FIGUEIREDO, Eurídice. “A narrativa de filiação de escritores judeus brasileiros”. In: CHIARELLI, Stefania; OLIVEIRA NETO, Godofredo de (Org.). Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.
LEJEUNE, Philippe; NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008
MELLO, A.M.L.(Org), Escritas do eu: introspecção, memória e ficção. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013.
MUXEL, Anne. Individu et mémoire familiale. Paris : Nathan, 2002.
SIMONET-TENANT, Françoise (org). Dictionnaire de l’autobiographie. Écritures de soi en langue française. Paris : Honoré Champion, 2017.
VIART, Dominique, « Le silence des pères au principe du ‘récit de filiation’ ». Études françaises, 45(3), 95–112. Disponível em https://doi.org/10.7202/038860ar
VIART, Dominique; MERCIER, Bruno. La littérature française au présent: héritage, modernité, mutations. Paris: Bordas, 2009
VÉRON, Laélia ; ABIVEN, Karine. Trahir et venger. Paradoxes des récits de transfuges de classe. Paris : La Découverte, 2024.
ORGANIZAÇÃO:
Dra. Ana Maria Lisboa de Mello (UFRJ-CNPq - Rio de Janeiro, RJ, Brasil)
Dra. Clara Lévy (Université Paris 8 - Paris, França)
Dra. Laura Barbosa Campos (UERJ - Rio de Janeiro, RJ, Brasil)
DATA DE SUBMISSÃO: de 01/02/2025 até 15/05/2025
APPEL A CONTRIBUTIONS V. 18, N. 1, 2025
LES RECITS DE FILIATION DANS LA CONTEMPORANEITE
En 2025, nous célébrons le cinquantenaire de la parution du livre de Philippe Lejeune : Le pacte autobiographique (Seuil, 1975), ouvrage d’importance qui a marqué un infléchissement dans les études sur l’autobiographie. Le théoricien, qui a transformé les études sur les écritures de soi et porté l’accent sur un genre jusqu’alors dévalorisé, n’a jamais cessé de revisiter et modifier ses propres notions. De même que les réflexions de Lejeune, son objet de recherche se construit autour d’une transformation permanente. Un demi-siècle après la sortie de son texte fondateur, nous vivons une époque où les écritures de soi occupent une position centrale au sein des productions littéraires où elles sont perpétuellement reconfigurées. Dans le contexte francophone, la parution et la bonne réception du Dictionnaire de l’autobiographie. Écritures de soi en langue française, en 2017, sous la direction de Françoise Simonet-Tenant, reflètent la force qui entoure cette modalité littéraire.
Dans notre dossier « Récits de filiation dans la contemporanéité », nous souhaitons réunir des articles autour d’ouvrages s’inspirant du questionnement, voire de l’investigation sur l’ascendance comme stratégie d’autocompréhension. Il s’agit d’écrivains qui enquêtent sur une filiation dont ils se sentent héritiers, généralement problématiques ; ils parlent de l’autre pour, en réalité, parler d’eux-mêmes, opérant un déplacement. « Le récit de l’autre – le père, la mère, ou tel aïeul – est le détour nécessaire pour arriver jusqu’à soi, pour se comprendre dans cet héritage : le récit de filiation est un substitut de l’autobiographie » (Viart, 2009, p.80).
Dès le milieu des années 1990, Dominique Viart a forgé le terme « récit de filiation » afin de mettre en avant un nombre considérable d’ouvrages centrés sur la thématique de la filiation, de l’héritage et de la transmission, mobilisant des stratégies récurrentes. De Annie Ernaux à Leila Sebbar, Maryse Condé et Annette Wieviorka, ou encore Pierre Michon, Dany Laferrière, Emmanuel Carrère ou Édouard Louis, le récit de filiation est devenu l’une des manifestations autobiographiques les plus mobilisées de notre contemporanéité. Dans le contexte brésilien, citons, par exemple, Tatiana Salem Levy, Julián Fuks, Adriana Lisboa, José Henrique Bortoluci, Gabriel Abreu, Noemi Jaffe, Conceição Evaristo, Salim Miguel et bien d’autres.
Les récits de filiation concernent une tendance large qui, bien que comportant des variations narratologiques distinctes, peut être considérée un phénomène d’époque, présent dans différentes régions du monde globalisé et qui réunit tout autant des textes référentiels que fictionnels. Dans ce vaste spectre, on trouve de nombreux ouvrages insérés dans des contextes historiques marqués par une violence extrême, tel celui de la Shoah, les génocides, les dictatures hispano-américaines, l’esclavage ou la dépossession issue de la colonisation. Les figures parentales apparaissent également au centre d’ouvrages qui problématisent la mobilité sociale et les conflits subis par des narrateurs transfuges de classe.
Le dossier a pour objectif de contribuer à la réflexion sur les récits de filiation en tant que modalité récurrente des écritures de soi à partir des années 1980 et, plus encore, celles du premier quart de ce vingt et unième siècle. Par ailleurs, il souhaite prendre en compte les répercussions des récits de filiation dans la littérature dans son ensemble, non seulement les écritures de soi, mais ceux qui influent sur les tendances de la fiction contemporaine et qui inspirent les « romans de filiation ».
Références
BAHIENSE, Andrea de C. Martins; CAMPOS, Laura Barbosa (Org). “Escrever a vida”: diálogos em torno de Annie Ernaux. Juiz de Fora: Editar, 2024.
BERND, Zilá. A persistência da memória: romances da anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional. São Paulo: Ed. Besouro, 2018.
DEMANZE, Laurent. Encres orphelines. Pierre Bergounioux, Gérard Macé, Pierre Michon. Paris: José Corti, 2008, (« Les essais »).
DEMANZE, Laurent. Un nouvel âge de l’enquête: portraits de l’écrivain contemporain en enquêteur. Paris: Éditions Corti, 2019, (« Les essais »).
FIGUEIREDO, Eurídice. A nebulosa do (auto)biográfico. Vidas vividas, vidas escritas. Porto Alegre: Zouk, 2022.
FIGUEIREDO, Eurídice. “A narrativa de filiação de escritores judeus brasileiros”. In: CHIARELLI, Stefania; OLIVEIRA NETO, Godofredo de (Org.). Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.
LEJEUNE, Philippe; NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008
MELLO, A.M.L.(Org), Escritas do eu: introspecção, memória e ficção. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013.
MUXEL, Anne. Individu et mémoire familiale. Paris : Nathan, 2002.
SIMONET-TENANT, Françoise (org). Dictionnaire de l’autobiographie. Écritures de soi en langue française. Paris : Honoré Champion, 2017.
VIART, Dominique, « Le silence des pères au principe du ‘récit de filiation’ ». Études françaises, 45(3), 95–112. Disponível em https://doi.org/10.7202/038860ar
VIART, Dominique; MERCIER, Bruno. La littérature française au présent: héritage, modernité, mutations. Paris: Bordas, 2009
VÉRON, Laélia ; ABIVEN, Karine. Trahir et venger. Paradoxes des récits de transfuges de classe. Paris : La Découverte, 2024.
ORGANISATION:
Dra. Ana Maria Lisboa de Mello (UFRJ-CNPq - Rio de Janeiro, RJ, Brésil)
Dra. Clara Lévy (Université Paris 8 - Paris, France)
Dra. Laura Barbosa Campos (UERJ - Rio de Janeiro, RJ, Brésil)
DATE DE TOMBÉE : 15 Mai 2024